terça-feira, 6 de maio de 2008

Entrevista com Laerte Levai na Revista dos Vegetarianos

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Repassando entrevista da Revista dos Vegetarianos n° 17 com o promotor Laerte Levai.

Justiça Vegana
por Samira Menezes

Em entrevista para a Vegetarianos, o promotor Laerte Levai explica como as leis brasileiras funcionam em relação aos animais.

Ele se formou em Jornalismo na década de 1980, mas foi no Direito que descobriu sua verdadeira vocação. Promotor de Justiça desde 1990, o paulistano Laerte Levai, de 47 anos,vem se dedicando a ações para acabar com a escravidão animal. Há 15 anos atuando na 4ª Promotoria de São José dos Campos, na área criminal-ambiental e tutela jurídica dos animais, Laerte afirma que se tornou vegetariano devido a uma ação pública que resultou no fechamento de um matadouro. "Até então, não tinha noção da dimensão das atrocidades cometidas contra os animais." Pai de três filhos, já lançou o livro Direitos dos Animais (Editora Mantiqueira), que,em 2008,terá nova edição com um capítulo específico sobre abolicionismo e um roteiro prático de defesa animal. Nesta entrevista, Laerte fala sobre o papel do Ministério Público em relação aos animais,expõe sua opinião sobre leis bem-estaristas e fala da necessidade de cursos sobre ética animal nas universidades.

De que maneira um promotor de Justiça pode ajudar a combater a escravidão animal?
O promotor de Justiça possui, por força de lei, a atribuição de agir em defesa dos animais. Afora os mandamentos constitucionais que garantem essa atuação, tenho ao meu alcance instrumentos jurídicos poderosos, como o inquérito civil, a ação civil pública e o termo de ajustamento de conduta. Posso também requisitar providências criminais contra os malfeitores de animais, denunciá-los e processá-los judicialmente.É fundamental que o tema relacionado aos direitos animais seja melhor trabalhado nas faculdades de Direito, permitindo que no futuro haja mais juristas sensíveis à causa.

E como o Ministério Público pode influenciar na decisão de acabar com práticas cruéis, como a vivissecção?
A tortura de animais é um fato inadmissível para quem se propõe a promover justiça.A experimentação animal reduz seres sensíveis à condição de objetos descartáveis e eticamente neutros. Como escreveu João Epifânio Regis Lima, a prática vivisseccionista é tida como mal necessário, refletindo o paradigma antropocêntrico na medida em que define quem é sacrificável e quem não é. Fenômeno semelhante, segundo ele,ocorre em zoológicos e circos com animais que, de forma dissimulada, refletem uma ordem cultural, de caráter essencialmente dominador.Daí a necessidade do enfrentamento judicial da vivissecção, apesar da resistência da comunidade acadêmica,dos falsos mitos científicos e do viés especista decorrente de um grave erro metodológico.Cabe ao Ministério Público, como agente de transformação social, lutar contra esse estado de coisas.Para tanto, há que se incluir os animais na esfera das preocupações morais humanas,pois eles também são sujeitos de direito.

Como vê ações de grupos como a ALF, que invade laboratórios e fazendas para resgatar animais?
Como membro do Ministério Público, órgão que possui a função constitucional de zelar pela defesa da ordem jurídica,não devo compactuar com ações dessa natureza.No entanto, como cidadão comum, compreendo a atitude daqueles que se propõem a salvar animais por meios não convencionais. Entendo que a lei não deveria punir quem resgata, por exemplo,um cão doente acorrentado em uma casa; pois a intenção do sujeito, neste caso, não é a de violar o domicílio alheio e nem de furtar o animal, mas a de defender um ser vivo,agindo portanto em estado de necessidade.

Qual a melhor forma de acabar com a escravidão animal?
A opção pelo veganismo amplia as fronteiras da ética, nos permitindo viver sem contribuir para o círculo vicioso da crueldade. Se o mundo todo fosse vegan – doce utopia – teríamos o fim da exploração animal. Precisamos repensar nossos hábitos e modo de vida, reconhecidamente cruéis e predatórios. O veganismo,que surgiu da quebra do paradigma antropocêntrico, possui uma base filosófica sólida e vem se tornando o modo mais direto e coerente de realizar o sonho abolicionista.

O filósofo e advogado Gary Francione afirma que as leis bem-estaristas só encorajam o uso dos animais. Concorda?
A crítica de Francione é coerente e subscrevo seus fundamentos.As leis bem-estaristas, que são maioria em nosso repertório legislativo, muitas vezes legitimam a exploração.Mas,por intermédio delas, obtive significativos resultados judiciais em favor de animais maltratados.Basta lembrar que consegui fechar um matadouro paulista com fundamento na Lei do Abate Humanitário, assim como um circo que utilizava animais no picadeiro,em desconformidade ao artigo 21 do Código de Proteção aos Animais. Não estou querendo dizer que essas leis sejam boas,e sim que elas funcionaram em casos concretos, resultando em um ganho significativo aos animais. Apesar disso, continuo acreditando que as mudanças de comportamentos decorrem mais da educação do que da força da lei.


Acredita que a existência de ONGs fortes como a PETA, por exemplo, faz com que o tratamento dado aos animais seja diferente nos países onde elas atuam?
Respeito o trabalho das ONGs de defesa animal, desde que sério e comprometido com o que propõem; mesmo sabendo que o dever de proteger os animais é quase sempre negligenciado pelo poder público.A PETA realiza campanhas que chamam a atenção, conseguindo comover muita gente.Porém, há denúncias de que ela faz acordos escusos com empresas exploradoras de animais, além de recorrer a estratégias publicitárias sexistas; o que não se mostra nem um pouco
ético.Quanto aos resultados dessas campanhas,eles são de eficácia duvidosa, pois diversas empresas que obtiveram o aval da PETA utilizam do sistema de criação animal nos moldes do bem-estarismo,como ovo de galinha solta,abate humanitário,dentre outras práticas que perpetuam a exploração animal.

Tem críticas em relação a grupos de bem-estar animal?
As entidades sérias têm o meu apoio, independentemente do rótulo que se possa dar a elas.Sei que várias associações protetoras são compostas por pessoas onívoras.Vejo isso a partir da minha própria trajetória de vida: aderi ao vegetarianismo somente depois de iniciar minha atuação como promotor.Meu antigo discurso bem-estarista foi sendo abandonado aos poucos, sobretudo depois que conheci o trabalho dos filósofos Tom Regan e Sônia Felipe. Tudo foi questão de tempo e de informação,o que me permitiu aderir, enfim,à postura abolicionista.

Que fato considera uma vitória pessoal nesses anos que vem lutando pela libertação animal?
Não interpreto os resultados positivos que obtive como vitórias pessoais,e sim como uma pequena contribuição para a causa animal. Apesar de ter sido pioneiro nas ações contra matadouros, vivissecção e circos com animais,nem sempre consegui o respaldo do Judiciário.Muitos desses processos estão nos Tribunais em grau de recurso, outros refletem conquistas importantes: a proibição do uso de animais em rodeios,uma sentença que reconhece a inconstitucionalidade do abate ritual em matadouro e a proibição do uso de animais em uma companhia circense.Outra forma de atuação decorre das teses que apresentei em congressos ambientais,sempre voltadas a um tema relacionado à proteção de animais.A mais recente, aprovada ano passado, sugere a criação de uma Promotoria de Defesa Animal,em São Paulo.

Existem várias formas de maus-tratos aos animais. Como a Justiça lida com essa questão?
A idéia de que os animais são bens sobre os quais incide a ação humana ainda prevalece no âmbito da Justiça. Isso decorre da concepção antropocêntrica e especista do Direito, cujo maior erro é considerar seres sencientes como objetos de uso e exploração.Considero os animais como sujeitos de direito e sob esta ótica é que venho atuando.Somente quando a perspectiva do direito ambiental tornar-se biocêntrica é que os animais poderão ter reconhecidos seus direitos.Em termos práticos, já denunciei criminalmente inúmeros malfeitores de animais,obtendo condenações pecuniárias ou transações penais em favor de entidades de proteção animal. É preciso lembrar, porém,que a pena prevista àqueles que maltratam animais desanima: o artigo 32 da Lei 9.605/98, principal dispositivo penal a tratar do assunto, é tido como conduta de menor potencial ofensivo e, por isso, não leva ninguém à prisão.

Se a sociedade faz distinção entre as espécies que "pode comer" daquelas usadas como estimação, então é possível concluir que não há muitas denúncias de abuso animal, certo?
Em São José dos Campos há dezenas de procedimentos sobre crueldade contra animais, sendo que a maioria versa sobre confinamento ou abandono de cães. Depois vêm os casos de envenenamento por chumbinho,principalmente de gatos, e os abusos sobre cavalos utilizados em serviços de tração, todos com problemas crônicos. Isso sem falar no extermínio de animais no CCZ e jardim zoológico, comercialização nas lojas pets, festival de pesca e matança em rituais de candomblé. Os rodeios que ocorriam no Vale Fest conseguimos impedir a partir de 2004, depois de intentar várias ações judiciais.Com relação à distinção entre as espécies, não há como negar que a sociedade age com especismo elitista,o que não deixa de ser um paradoxo:enquanto afaga um, come outro.

Por que a Lei não proíbe atividades como o rodeio, mas condena o tráfico de animais silvestres, por exemplo?
Isso tudo decorre da atividade do Poder Legislativo.Vigora em nosso País uma lei bem-estarista que regulamenta o rodeio e outra que atribui ao peão a condição de atleta profissional.De outra parte,os legisladores definiram como crime o tráfico de animais silvestres.Tal incoerência acontece porque o Direito enxerga a fauna como bem ambiental e, via de regra, desconsidera o sofrimento dos animais domésticos, especialmente aqueles destinados à alimentação humana. Sob o ponto de vista ético, não existe diferença alguma entre os animais.A tutela jurídica deve alcançar todos os seres sencientes submetidos a abusos, maus tratos, ferimentos ou mutilações,porque nossa Constituição Federal, no artigo 225 par. 1º, inciso VII,veda as práticas que submetam os animais à crueldade.

Existe um Código de Proteção Animal, certo? Ele funciona na prática?
O Código de Proteção Animal, representado pela Lei paulista 11.977/05, está em vigor em parte porque inúmeros artigos tiveram sua eficácia suspensa por força de decisão liminar em Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) concedida pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em favor da Federação da Agricultura. Há outra ADIN proposta perante o Supremo Tribunal Federal, ainda sem decisão final, que busca o reconhecimento da inconstitucionalidade de todo o texto.Fica difícil,portanto, fazer uso efetivo de uma lei mutilada. Diante de situações concretas de crueldade para com animais,é melhor evocar sempre a Constituição Federal de 1988 e a Lei dos Crimes Ambientais.

Falta diálogo entre as ONGs de proteção e libertação animal e os membros do governo e do Ministério Público?
Sim. É preciso dizer que o tema dos direitos animais está deixando de ser um tabu.Lembro-me que há 20 anos o movimento de proteção animal no Brasil estava restrito a algumas poucas pessoa devotadas, existindo raras obras jurídicas disponíveis.O advento dos livros sobre direito dos animais,a partir de 2000,somado ao fácil acesso à internet,permitiu que essas questões fossem conhecidas mais a fundo. Acho importante o diálogo entre as partes interessadas,o que não significa fazer concessões duvidosas. Há diversas formas válidas para debater o assunto: palestras, reuniões, simpósios, congressos, audiências públicas ou cursos de especialização.Falando nisso, acho que já é hora de alguma universidade brasileira introduzir,no currículo acadêmico,eventual disciplina que verse sobre Ética e Direito.